O Começo do Fim (Conto)
- Ingrid Gomm
- 17 de jan.
- 15 min de leitura
Atualizado: 1 de fev.

O Antes
01/11 - 14:00h
— Mãe, liguei para avisar que vou ficar uma semana fora, mas parece que você não viu a ligação. Não se preocupe, ok? Nos vemos quando eu chegar. Amo você.
06/11 - 20:18h
— Mãe, já é a quinta vez que eu te ligo e você não atende. Que tá acontecendo? Ele bateu novamente em você? Eu vou matar esse desgraçado!
08/11 - 09:40h
— Mãe, sou eu novamente. Vou contar até cinco. Se você não abrir a porta, eu vou arrombar! Tá ouvindo, mãe? Mãe?
Foi assim que tudo começou.
Meu nome é Carolina, mas pode me chamar de Carol. Nasci em Camaçari, Bahia, sou filha de Paula e Hernesto e a caçula entre meus irmãos Arnaldo, Bruno e Carlos. Até hoje, me pergunto por que meus pais não me chamaram de Diana, Daniela ou outro nome com essa inicial para continuar o alfabeto deles. Vai entender.
Trabalho como mecânica e, depois de alguns anos suando, finalmente consegui abrir a minha oficina. As coisas têm dado muito certo para mim, mas nem sempre foi desse jeito.
Cresci entre meus irmãos e mais umas três dúzias de marginais, que, à época, chamava apenas de vizinhos. Meus pais não tinham uma condição financeira favorável, mas sempre havia comida na mesa. Eu não dava a mínima para o resto.
Foi na adolescência que descobri as motos, os carros, as armas e os furtos. Na verdade, uma longa lista de atividades pouco admiráveis começou a fazer parte da minha rotina - não que isso fosse um problema, porque não era como se alguém esperasse muita coisa de mim.
As drogas surgiram na minha vida por volta dos 14 anos, especialmente quando minha mãe obrigava Bruno a me levar com ele para onde quer que fosse - festas, casa dos amigos, jogos de basquete na quadra comunitária... Quando dei por mim, já estava fumando maconha, me tatuando, brigando nas ruas, cheirando cocaína, me embriagando e queimando meu dinheiro com cigarro. Maldito cigarro.
Nesse período, o meio irmão de minha mãe vinha eventualmente nos visitar. Tio Romero foi fruto do primeiro casamento do pai deles e morava em algum lugar da América Latina, não lembro realmente o nome, mas era engraçada a forma como ele falava e se comportava. Eu adorava, meu pai odiava. Ele costumava vir até Camaçari ao menos uma vez por ano, dizia que tinha negócios aqui, mas eu pai costumava falar pelos cantos que ele não passava de um vagabundo. Por sorte, meu tio nunca ficava mais do que alguns dias, fato que também impedia que acabássemos com algum apego maior a ele, mas nem por isso deixava de ser divertido.
Lembrando agora desse período da minha juventude, as coisas pareciam mais leves do que realmente eram. Em uma sexta-feira eu cheguei muito nervosa em casa, pois havia perdido a chave do meu armário da escola e seria um transtorno para resolver. Estava realmente chateada por conta disso e meu tio percebeu; depois só me lembro de ter passado todo o final de semana com ele, um conjunto de pinças (ou chaves de pressão), clipes de papel, chaves hexagonais, cartão de crédito sem uso e cabides (úteis para portas de carros). Foi uma experiência intensa, mas incrivelmente útil; na segunda-feira eu mesma resolvi o problema, fechaduras nunca mais seriam um aborrecimento para mim.
Ao final da semana ele partiu, mas depois daquele momento, meu tio tornou-se uma incrível referência para desenvolver todas as habilidades que eu não deveria ter. E eu acho que ele gostava disso.
Contaminada pela paixão de Bruno, meu irmão mais próximo, comecei também a frequentar garagens, desmanches e clubes onde motos e carros eram o centro das atenções. Não demorei a me tornar uma espécie de mascote nesses locais; era a menina Carol de olhos castanhos, magrela, cabelo castanho, que adorava ver como tudo funcionava e não tinha medo de barulho ou sujeira.
Eu queria ser tatuadora. Já estava toda riscada, e o fato de desenhar bem era mais um motivo para sair riscando a pele alheia, mas a verdade é que o amor pelos motores foi mais forte. Dessa escolha, minha estrada com os Red Devils começou.
O clube trazia um grupo aficionado por qualquer coisa com rodas. O grande problema eram os hábitos noturnos, onde furtos de veículos, rachas e mais uma série de delitos e crimes tornaram-se comuns, inclusive para mim. Em pouco tempo, aprendi a dirigir, consertar todo tipo de máquina que tivesse nas mãos e atirar como um Red Devils, antes que um Skull me pegasse. A rivalidade entre os dois já existia antes de eu começar a frequentar o meio. Não sei exatamente o que motivou essa divergência, mas vi muita gente morrer por culpa disso.
Certa noite que passei com o pessoal do clube, encontramos um Mercedes-Benz 300 SL. O carro é um clássico, e é claro que não conseguimos deixa-lo passar. Um dia isso acabaria acontecendo, era inevitável; fui fichada e passei dois anos presa - tive sorte de não ter sido pior. Meu pai morreu nesse período, vítima de infarto. Foi aí que notei o quanto estraguei tudo com ele. A vida pode ser uma merda, mas nada é pior do que ter arrependimentos.
Sendo sincera, não gosto de falar desse período, porque sempre aparece uma pessoa para dizer besteira sobre o que é o sistema prisional. Depois do que passei atrás das grades, acho que só quem já viveu essa experiência sabe que aquele lugar, do jeito que é, dificilmente melhorará alguém. Sou um exemplo disso. Os dois anos dentro da penitenciária despertaram o pior de mim e, se não despertou, certamente cultivou.
Certa vez, ouvi de uma companheira de cela - devota de alguma religião que nunca soube qual era - dizer que, "quanto mais opressor for o ambiente a sua volta, quanto mais latente for a sensação de ser subjugado, maior será o monstro que corromperá a alma". Nunca me esqueci disso. Todos os dias, todas as noites e nenhum segundo de paz. As brigas eram frequentes, e eu participei de muitas delas. Acabou virando algo normal, rotineiro; como um saída para comprar cigarro. Não era isso que queria para mim. Estraguei tudo e aceitei o fardo.
Durante o tempo em que cumpri minha pena, Arnaldo e Carlos nunca foram me visitar. Eu soube, por Bruno, que Arnaldo casou-se e foi morar na Alemanha, mas não tenho notícia alguma de Carlos. Ele não conseguiu perdoar o meu deslize, especialmente após a morte de nosso pai - disso eu tinha certeza. Não vou julga-lo; de certa forma, ele tem razão. O problema é que, quando nossa mãe se envolveu com outro homem, Carlos simplesmente sumiu e ninguém mais ouviu falar dele.
Economizei por um bom tempo, enquanto trabalhava com João, Mike e Buba. Agora eu tinha ajudantes, e o que poupei finalmente tornou-se o bastante para abrir meu próprio negócio. Um salto para quem veio de lar pobre, estudou até o ensino médio e passou os últimos dois anos em uma penitenciária. Nas ruas de Camaçari, fiz fama - no começo, pelas encrencas que arrumava e saia milagrosamente viva; depois, pelo meu ganha pão.
Enquanto as coisas começavam a se ajustar para mim, Bruno recebeu uma proposta de trabalho em Salvador. No começo, achei que ele não iria. Porem tratava-se de uma sociedade para abrir uma mercearia local - nunca imaginei Bruno trabalhando com qualquer coisa além de carros, só que não era apenas isso; sua esposa queria essa mudança, dizia que era hora deles crescerem, então eu apoiei e não o vi mais.
Pouco tempo depois abri o Devils Car, comprei um cantinho pra mim - bem modesto - e um Jeep, que comecei a reformar. A maior preocupação que tenho atualmente é com minha mãe, pois o imbecil que ela chama de namorado é violento. Já avisei que, se eu pegar ele machucando-a, a coisa vai ficar feia. Volto para cadeia em uma dessas. Ainda assim, nada a faz larga-lo. Acho que ela se sente tão sozinha depois da morte de meu pai que prefere sofrer nas mãos desse bastardo a encarar uma casa vazia - talvez igual à minha.
Era nisso que estava pensando enquanto golpeava o velho saco de pancadas que pendurei em minha garagem. Até que o celular tocou.
— Estou ouvindo, João.
— Carol, surgiu um evento pra esse final de semana. Vem comigo?
Fui convidada para ir a uma exposição de carros clássicos, motos conceituais e afins, em Feira de Santana. Tentei falar com minha mãe antes de viajar, mas ela não atendia. Também liguei diversas vezes enquanto estive fora, deixei recado no correio de voz e nada. Ela não some assim. "O desgraçado fez algo", concluí.
Parei na frente da casa dela, glock na mão e celular ao ouvido. Estou farta dessa preocupação em minha cabeça. Bati insistentemente na porta e tentei olhar pelas janelas, mas estavam todas com as cortinas fechadas. Então, peguei a chave reserva atrás de um tijolo solto na entrada, destranquei a fechadura e, depois do que vi, nunca mais os meus dias foram os mesmos.
25/08 - 02:18h
Despertei no meio da noite. Geralmente, costumo dormir como um recém-nascido, mas agora estou sentada na cama sem nenhum vestígio de sono.
Acho que entrei na menopausa - não menstruo há três meses - e talvez a insônia seja um efeito disso. Estou mais impaciente. Às vezes, tenho a impressão de que Roberto está me vigiando. Será que ele pensa que estou tendo um caso? Como se não bastasse toda minha dedicação, agora sou alvo de seus olhares esquivos e avaliadores. Talvez esteja até mesmo vigiando minhas ligações. Ele não gosta de Carol.
28/09 - 14:33h
Fui ao médico, pois estou com muitos sintomas estranhos. Parece que vivo em uma eterna TPM, só que mais severa. Roberto disse que cheguei a ameaçá-lo com uma faca - piada de mau gosto. Imagino que tenha sido uma tentativa sem graça de deixar claro como está difícil conviver comigo atualmente, embora meus lapsos de memória sejam cada vez mais frequentes.
Eventualmente, Hernesto comentava que eu era uma mulher impaciente e uma amante imprevisível. Será que me tornei insuportável ou sempre fui assim? Sinto falta das loucuras que fazíamos juntos. Ainda me considero uma mulher jovem, sabe? Tive filhos com pouca idade. Meu primeiro, Arnaldo, veio quando eu tinha apenas 14, e minha caçula... Falar de Carol é algo muito delicado. Cometi um erro - quem nunca? Não pensei que fosse engravidar... Essa gritaria lá fora está me incomodando tanto! Acho que preciso de um banho frio.
As crianças na rua são um inferno! Tenho as observado durante o dia e não sei como os pais aguentam. Oh, droga! Meu nariz está sangrando! Maldito clima seco. Vou me lavar de uma vez.
30/10 - 02:27h
A casa está completamente fechada. Detesto a claridade. Minha cabeça e meus ouvidos doem; é como se o mundo estivesse caindo em cima de mim. Pior ainda: sinto que Roberto me odeia e quer me matar. Resolvi trancar-me no quarto. A vontade que tenho é de ficar isolada. Além disso, não suporto o telefone que toca na sala. O barulho está insuportável!
Nos raros momentos em que tenho de paz, lembro-me do passado, de meus filhos, minhas escolhas... Poderia ter me esforçado para ser uma mãe melhor. Confesso que não tenho certeza se Carol se sentia diferente do restante da família, mas sempre me esforcei para esconder a verdade de todos eles. É que a minha menina foi fruto de um deslize. Hernesto e eu brigamos, então deixei as crianças com minha mãe até que nos acalmássemos. Estava péssima. Decidi parar em um bar que ficava no caminho de volta para casa, onde conheci um militar. Isso foi tudo o que restou sobre ele em minha memória.
Para ser honesta, essa época do casamento não foi fácil. Hernesto passou a dormir fora quase toda noite, mas, quando minha menstruação atrasou, vi que era hora de procura-lo antes que fosse tarde demais para encobrir meu erro. Afinal, eu não queria que a criança ficasse sem um pai. Depois disso, me esforcei diariamente para que pudéssemos continuar juntos. A questão é que grandes segredos nos consomem a alma e não suportam para sempre. Não foi diferente conosco.
Quando minha Carolina estava na cadeia, Hernesto e eu tivemos nossa pior briga. De cabeça quente, acabei contando tudo. Foi nesse dia que ele teve um ataque e não resistiu. Esse erro me destruiu. Como alguém pode se perdoar por fazer algo assim? A cada dia, fico mais doente; meus pensamentos fogem e permanecem apenas sensações, como raiva e ansiedade.
Não quero ver, falar ou ouvir ninguém. Só quero afundar-me em recordações, e às vezes, apenas às vezes, parece que nem isso eu tenho. Algo está tão errado dentro de mim. Sinto medo de morrer e tenho vontade de...
Vejo flashes da infância de meus filhos. Sei que a culpa é minha por Carol desviar-se assim, embora os outros também não tenham ido tão longe.
Arnaldo ganhou uma bolsa para estudar educação física, por ter se destacado no basquete da escola; depois de formado, virou treinador da liga juvenil regional - nunca lembro o nome do time. Bruno namora há dois anos com uma boa moça e está sempre trabalhando em uma concessionária de revenda de carros seminovos. Carlos era o mais apegado ao pai e, tentando seguir seus passos, decidiu ajudá-lo nas obras de construção civil tão logo completou 18 anos de idade. Talvez por isso, não aceitou minha relação com Roberto. Tentei conversar, mas Carlos evitava qualquer tipo de contato comigo. A última notícia que tive dele foi de que havia saído da cidade.
Após alguns meses, parei de insistir. Quem sabe o tempo se encarregue de resolver as coisas entre nós.
Assumo que me faltou paciência para a maternidade. Afinal, foi um filho atrás do outro e isso acabou esgotando minhas forças durante a criação deles. Hernesto trabalhava o dia inteiro e só chegava em casa ao anoitecer, sempre cansado e querendo dormir. Eu cuidava da casa e acabava deixando as crianças por conta própria, brincando entre si ou responsabilizando uns pelos outros.
Minha mãe ajudava sempre que podia, mas no momento em que a idade começou a atormenta-la, isso já não foi mais possível.
Lembro-me de quando Carol tinha por volta de seus 15 anos e encontrei uma arma em suas coisas; era uma pistola ou algo parecido - não entendo disso. Fiquei sem coragem de tirar aquela coisa da mochila dela, mas a segui de carro quando ela saiu.
Fiz isso naquele dia e em muitos outros depois. Eu justificava essas saídas dizendo aos meus filhos que estava na igreja ou com minha mãe - só assim conseguia vigia-la sem levantar suspeitas. Aos poucos, soube que Carol estava envolvida com uma gangue, brigava na rua e furtava carros e motos rotineiramente. Minha menina também ia a clubes noturnos - "inferninhos", como chamavam - e eu não tinha paz até ela estar em casa.
Era madrugada quando a vi deixar um dos lugares onde mais frequentava e ser abordada por dois homens. Pelas jaquetas que usavam, estilizadas com caveiras, pareciam ser de uma gangue rival que ela comentou certa vez durante o jantar. Nesse instante, percebi o perigo que minha filha corria e imediatamente quis correr ao seu encontro. Antes que eu abrisse a porta do carro, ouvi dois disparos.
Carol - a garota de olhos castanhos atentos e sorriso delicado - havia acabado de atirar contra eles a queima roupa. Ambos caíram, e nenhum vestígio de pânico ou terror passou pela expressão de minha criança, que em momento algum notou que eu testemunhava tudo a alguns metros de distância. Fiquei atônita com aquilo e não consegui fazer nada além de permanecer imóvel ao volante.
Então, vi que minha filha olhou em volta, abaixou ao lado dos corpos, pegou suas carteiras e armas - que os homens nem tiveram tempo de sacar - para sair do local como se nada tivesse acontecido, guardando tudo em sua mochila e partindo tranquilamente. Como eu poderia contar algo assim? Quem era aquela que estava diante de mim? Eu não a reconhecia, no entanto admito que falhei com ela.
Os irmãos, o pai, os amigos... Ninguém a viu em todas as suas facetas como eu; ninguém a viu treinando no bosque com arma em punho, latas e garrafas como alvo; ninguém a viu furtando, espancando, matando. Eu, sim, porém me omiti. Era como se ela assumisse outra personalidade.
Minha caçula nunca deixou de ser gentil e carinhosa comigo e nunca ergueu a voz contra os irmãos. Como pode ser?
04/11 - 20:17h
Roberto viajou a trabalho já faz algum tempo. Ele pediu que eu fosse ao hospital e disse que meus filhos têm ligado para mim, mas...
04/11 - 20:21h
Não sei o que estava fazendo. Sinto-me estranha. Algo parece muito errado comigo, eu...
04/11 - 20:24h
É noite? Dia? Cada vez que fecho os olhos, parece que me afasto mais de quem sou...
04/11 - 20:26h
Penso em meus filhos. Sonho com todos eles. Quero que sejam felizes, quero que realizem seus desejos e quero que encontrem a paz, especialmente Carolina. Minha menina é uma alma perdida e...
06/11 - 18:30h
Grunhidos, respiração ofegante.
— Ahh...
Gemidos, desorientação, agonia, dor...
08/11 - 9:41h
Carolina havia acabado de abrir a porta da casa de sua mãe, Paula, e sentia seu peito agitado com as preocupações sobre o bem-estar dela. A glock já estava destravada e parecia fazer parte do corpo da mulher, pois os movimentos surgiam como uma dança corriqueira a ela. Um odor incomum preenchia o ar da sala, que parecia absolutamente normal, se não fosse por esse indiscreto detalhe.
A manga da blusa tornou-se uma proteção para limitar o acesso daquela fragrância fétida, enquanto os passos seguiam firmes, assim como o pulso a manter a mira alta da arma.
Os olhos analisaram a sala comum: dois sofás, poltrona, televisão, estante, mesa de jantar, lustre. Tudo em seu devido lugar, mas nem sinal de sua mãe. Carol mantinha-se silenciosa, pois, no momento em que decidiu entrar sem arrombar a porta, soube que o único barulho a ser ouvido seria o dos tiros contra o algoz de Paula. Assim, pensava, diminuiria as chances de reação do alvo.
A cada passo, a filha reafirmava para si que as coisas não estavam bem. Carol nunca se sentiu assustada dessa maneira, e tal emoção soava incomum dentro dela; era o medo de ter perdido a sua mãe.
A cozinha foi o próximo cômodo. As luzes apagadas, comida estragada dentro das panelas, pia suja com louças e copos empilhados - o mau cheiro que inundava o local não vinha apenas dali.
Tudo muito diferente de como sua mãe costumava deixar. A jovem continuou sua investigação, buscando agora os quartos. Havia três na casa, todos com as portas fechadas, e Carol foi direto para o de casal, recostando o ouvido contra a superfície de madeira, na tentativa de detectar algum som que pudesse denotar uma presença ali. Nada ouviu. Ela então olhou para a soleira da porta, atenta às sombras. Mais uma vez, nada. Com o máximo de cautela, Carol girou a maçaneta e abriu lentamente a porta em busca da visão de sua mãe ou do homem que agora residia com ela. Para seu mais profundo alívio, era a imagem de sua mãe, sentada de costas sobre a cama, que lhe encheu os olhos. O sorriso brotou naturalmente, junto ao nó na garganta que anunciava o choro.
"Quando me tornei tão paranoica?", questionou-se.
— Mãe, o que está acontecendo? Eu tenho te ligado há dias e você não responde. A casa está com um fedor horrível! Pensei que tinha alguém morto aqui. Pensei que...
O som de sua voz bastou para que o rosto de Paula virasse suavemente em direção à filha, encarando-a com uma expressão febril e sem vida. A senhora estava com um olhar vazio, cabelos bagunçados, lábios roxos e nariz purulento. Vociferava de modo animalesco. Carol parou e Paula ergueu-se.
— Mãe? O que está havendo? Você está bem?
A pálida figura sequer parecia ouvi-la, indo ao encontro dela como um predador faria. Carolina recuou. Arma baixa, sentidos em alerta e uma vontade enorme de abraçar sua mãe. Seus instintos diziam-lhe que algo estava evidentemente errado, muito errado. Paula avançou com agressividade, enquanto a filha tentava compreender o que estava acontecendo, estática na porta do quarto. Ao notar a boca aberta, os dentes expostos e a expressão bestial que surgia naquela face transtornada, Carolina impediu que sua mãe a agarrasse, empurrando-a.
— MÃE, O QUE HOUVE? FALE COMIGO!
Paula se recompôs e partiu novamente contra Carolina, que instantaneamente correu dali. A caçada veio intensa, fazendo a jovem disparar até a porta de casa. Ela virou-se mais uma vez para ver a imagem do ser que a perseguia. A respiração da jovem havia mudado e muitos pensamentos tomaram sua mente. Ainda assim, havia uma certeza de que aquela não era mais a mulher que ela conhecia tão bem.
— Mãe...
A palavra saiu como um sussurro. A mulher estava prestes a alcança-la com o ímpeto assassino.
— ...eu te amo.
A glock não foi erguida, não havia vontade de lutar. Criada no submundo e vinda de uma família dividida, a jovem mecânica perdia sua identidade após perceber que, talvez, tivesse chegado ao seu fim. Seria um desfecho merecido, depois de tantas vidas tiradas e nenhum remorso sobre elas - não foi grande coisa.
Ela não tentou fugir, recebendo todo o impacto do corpo de sua mãe contra o seu. Ambas tombaram no chão e, em fração de segundos, Paula agarrou-a pelos ombros. Com a boca escancarada em uma fome avassaladora, a criatura agiu para tomar-lhe a vida. Instintivamente, Caroldescarregou a arma contra sua mãe, impondo uma distância curta e significativa para que os disparos pudessem ser executados. Seis balas atingiram-lhe o dorso, até que o sétimo tiro atravessou-lhe a cabeça verticalmente, pondo um fim a qualquer atividade que ainda acontecesse naquele corpo.
Ela respirou fundo enquanto o cadáver era mantido parcialmente sobre ela. Os braços empurraram lentamente aquela carcaça sem vida para que caísse ao lado. Carolpassou longos minutos fitando o teto branco, sem que nada lhe fizesse sentido.
O peito apertou-se, a culpa lhe corroeu, mas a arma permanecia presa aos seus dedos. Apenas quando a sirene da polícia foi ouvida ao longe que ela conseguiu erguer-se. De pé, travou a arma, guardou na parte traseira do cós da calça, puxando a blusa para cobri-la. Era hora de fugir. Sabia que precisava correr, mas era difícil afastar-se do corpo da mãe. Seus olhos marearam e todos aqueles sentimentos conflitantes e arrebatadores a tomaram em um soluço forte e desesperador. A cena era grotesca. A mulher abarrotada de perfurações, o corpo violado pelo mal que lhe acometera e, por fim, a cabeça profanada pela própria filha ao dar-lhe um fim covarde como aquele.
O som das sirenes ecoava mais alto. "Estão chegando", avaliou. Nada mais poderia parar a jovem, a fugitiva que sobrevivera às garras da própria mãe.
O Agora
09/11 - 20:00h
Todos os telejornais, rádios, programas televisivos, revistas e mídias digitais reportaram os acontecimentos do dia 08/11. O pânico instalou-se mundialmente e os efeitos da possível doença foram devastadores, afetando a economia, o turismo, as políticas governamentais de importação e exportação, as forças armadas de todas as nações e mais uma série de fatores com reflexo regional e global. Tratava-se do começo do fim.
Muito bom! Amei, vai ter mais?