A Era da Loba
- mbescritoramb
- 21 de jan.
- 18 min de leitura

A Descoberta
Eu sou a princesa Lirah Gealach, filha do Rei Karovh e da Rainha Mirna do Norte. Neste exato momento, encontro-me com um exército de lycanos renegados, humanos em busca de libertação, as bestas-feras e um imenso contigente do exército da Rainha Chrystal, para retomar aquilo que é meu por direto. Retomar a minha alcatéia, a Alcatéia Real de Mactíre é o que mais importa para mim, eu preciso continuar o legado de prosperidade de meu pai. Estou aqui, envolta em meus pensamentos e com a adrenalina banhando meu corpo, por isso, e enquanto espero o sinal do alinhamento planetário, vou contar para vocês como eu cheguei até aqui, neste dia que irá mudar a existência de todo o continente Lycan.
E tudo começou assim…
Meu tio Melovh arquitetou um golpe de estado no reinado de meu pai, o Rei Karovh. Foram muitas batalhas cruéis, até o dia em que minha mãe foi capturada no fronte, e é claro que o usurpador do meu tio a usou. Meu pai enlouqueceu diante do terror que o corpo sem vida de minha mãe se encontrava. Ela foi estuprada, desmembrada e exposta como um troféu para as tropas mercenárias de Melovh. Meu pai, ou melhor, o Rei não suportou viver sem sua companheira e se atirou no Vale das Sombras, resultando na vitória do meu tio e irmão caçula do meu pai. O Rei Regente Melovh, como ele passou a ser chamado, deixou toda a sua malignidade emergir, e inebriado pelo poder que detinha em suas mãos, deu início a um estado de terror. A censura, as expiações e as torturas, agora eram rotineiras no que antes era uma terra fértil e um reino próspero. Meu tio me manteve viva por um único motivo, eu era sua moeda de troca. Não passava de um acordo monetário para seus interesses. Contudo, esses interesses não me protegeu do cativeiro quando vivi sob seus domínios. Sim, eu era sua prisioneira mais importante, ao mesmo tempo, a que mais sofria. Minha virgindade teria que ser mantida, pois eu ainda não havia me transformado, minha loba ainda não havia tido a permissão da Deusa Luna para se despertar. Só que este fato não impedia que seus mercenários e suas companheiras, ou seja, as mulheres que usufruíam de um pouco de poder, transformassem minha vida em um inferno.
Elaborei um plano ousado para minha fuga. Um plano, onde eu necessitaria ser muito disciplinada para continuar viva. Por dois grandes ciclos lunares eu bebi diariamente três gotas de acônito para disfarçar o meu cheiro. Vocês sabem, a diferença entre o veneno e o remédio é a dose. Então, em uma pesquisa na biblioteca real, aliás que estava empoeirada e esquecida, aprendi uma receita ancestral contendo o veneno dos lobos, para disfarçar o próprio cheiro. Bom, me preparei para minha fuga e quando o dia chegou, eu corri. Corri com a força de uma subnutrida que não havia se transformado e, com isso, sem o auxílio dos poderes da minha loba. Em alguns momentos, eu parava no meio da relva da Floresta Dourada, para arfar o cansaço de meu corpo e a determinação de minhas atitudes, contudo, não permiti deixar crescer a expectativa em meu coração. Eu sabia que se esse sentimento banhasse minha mente, eu desviaria do meu caminho. E, meu caminho era as Terras Áridas, local onde apenas os mais destemidos, ou melhor, os párias, os mercenários livres, as prostitutas e aqueles que precisam viver no anonimato, ousavam chegar. Para lá que eu corri.
Eu fugi com os pés e as mãos machucados devido o trabalho forçado que Melovh me obrigava fazer, meus bolsos estavam vazios, todos os meus pertences consistiam em roupas esfarrapadas e totalmente indignas de uma princesa Lycan, uma pequena bolsa contendo meu anel Magistral e algumas moedas de ouro, umas poucas frutas secas e pão velho, em minha cintura encontrava-se a espada Kyrliam, o objeto sagrado símbolo do masculino de meu povo. Meu pai escondeu a espada para que Melovh não a encontrasse, há um poder oculto nela. Os músculos de minhas pernas ardiam, meus pulmões queimavam enquanto o suor percorria minha pele. Mas, eu não podia parar, não podia perder o tempo e nem a distância que tinha como vantagem, eu precisava chegar o mais rápido possível em meu destino, Burburel a capital das Terras Áridas.
Quando dei por mim, a vegetação já estava se modificando. As exuberantes árvores da Floresta Dourada ficaram para trás, dando espaço a pequenos arbustos e a terra úmida de cor escura já se apresentava em uma tonalidade marrom clara e mais ressequida. Foi ali, na mudança da vegetação, que eu parei por alguns segundos, olhei ao redor enquanto limpava o suor que escorria por minha testa e me abaixei para sugar o ar e amainar meu cansaço. Foi a primeira vez que sorri com a determinação. Agora faltava pouco para meu destino.
…
Eu caminhei por entre os habitantes e os desgarrados das sujas ruelas de Burburel. O fedor e a sujeira imperavam, ratos do tamanho de gatos caminhavam livres, pedintes, prostitutas, crianças abandonadas, eram a pintura das ruelas e da podridão que a cidade me oferecia como refugio. Ainda não comemorava a minha liberdade, mesmo que minha respiração já exprimia o sentimento do alívio, era perigoso demais que aqueles habitantes descobrissem quem eu era. Consegui um canto localizado entre muros de uma ruela qualquer para me sentar e descansar, e para analisar todos os estragos de minha fuga. Foi quando eu percebi que corri por sete dias e sete noites solares, foi naquele descanso que tive a certeza da minha escolha por Burburel.
Não demorou muito para que o cansaço e as dores se tornassem insuportáveis, e eu cai em um sono profundo. Quando eu acordei, toda dolorida e sentada naquele canto úmido de uma ruela perdida, eu comi meu último alimento, a metade de um damasco seco e um pedaço de pão que continha mofo. A fome percorria cada célula de meu corpo e uma vontade insana de pedir comida a qualquer um pareceu ser razoável, mas mesmo assim, eu me mantive firme, ainda não era hora de pedir nada a ninguém ou procurar um subemprego qualquer, eu já havia avistado os mercenários de meu tio fazendo pequenas e discretas buscas em bares e prostíbulos. Teria que ser paciente e aguardar até eles irem embora.
Um grande ciclo lunar decorreu desde minha chegada em Burburel, quando os mercenários se convenceram de que eu não estava ali. Quando arquitetei minha fuga, contei com a certeza de que meu tio supunha que eu fugiria para a Alcatéia White, localizado nas Montanhas Geladas. A Rainha Chrystal é sua inimiga declarada, e ainda, dispõe de um imenso exército alado e mortífero, o real motivo para ser a única alcatéia que meu tio não se apoderou. Mas, eu não poderia pedir abrigo para a minha tia e irmã da minha mãe nesse momento, eu precisava encontrar o Cálice antes, o objeto sagrado símbolo do feminino de meu povo, e algo em meu íntimo dizia que ele estava nas areias escaldantes das Terras Áridas. Ao longo desse tempo, eu me alimentei de restos que eram jogados no lixo, cortei meus cabelos e todas as noites eu passava uma pasta contendo carvão para camuflar sua cor dourada. Eu providenciei novas roupas, ou melhor, novos trapos e tentei ao máximo me disfarçar de um humano menino. Mais um filho de ninguém que caminhava pelas ruas fedorentas de Burburel.
Quando os mercenários foram embora, eu busquei um subemprego em uma olaria. Era perfeito, pois o barro me protegeria das investidas dos humanos e camuflava meu cheiro. Comecei a dormir no sótão do grande galpão, e assim, passei outro grande ciclo lunar. Ainda penso naquelas noites maldormidas por causa do medo de ser descoberta e ter meu corpo profanado, ser morta por estupradores, vendida como escrava sexual, ou pior ainda, ser devolvida para meu tio.
Um acontecimento mudou todo meu plano. Em um dia escaldante, as bestas-feras de Leroy fugiram do canil, enquanto algumas delas avançaram contra a população, outras correram para as colinas arbustivas a leste da cidade. Justamente o local onde retirávamos a argila para ser usada na olaria. De início não compreendi o que estava acontecendo conforme comecei a escutar os gritos agonizantes ao longe, e não vou negar que minhas pernas ficaram bambas por causa do medo de que os mercenários haviam localizado meu rastro. Foi quando eu vi, seis grandes bestas-feras correndo em nossa direção. Os outros homens que cavavam a argila comigo dispararam em uma corrida sem destino, já eu, paralisei. Não consegui dar um passo sequer para lugar nenhum, eu só olhava aqueles monstros enormes vindo em minha direção. Pensei: “É melhor morrer comida por uma besta-fera do que nas mãos de meu tio”. E foi aí que tudo mudou. As bestas-feras pararam na minha frente, me cheiraram, olharam diretamente em meus olhos em subserviência, e em seguida, saíram em disparada atrás dos humanos que corriam por suas vidas. Elas me reconheceram. Bom, naquela noite, depois de tudo ter se resolvido e nenhum culpado ter aparecido pela catástrofe, o capataz da olaria veio até o sótão atrás de mim. Devo dizer que ele não veio de forma educada, muito pelo contrário, a truculência com que me jogou sótão abaixo, só não foi pior por causa de Leroy.
Leroy é o único filho e herdeiro de Mathias, o dono da cidade de Burburel. Tudo e todos pertencem a ele. Mathias é um lycano poderoso, descendente de uma família real que foi morta no grande terremoto que aconteceu a muito tempo, e que consumiu o local que hoje chamamos de Terras Áridas. Mathias ainda era um infante, mas mesmo assim, assumiu suas responsabilidades, organizando os sobreviventes e elaborando a magia que corre pelas ruelas até os dias de hoje. Que eu saiba, só existem nove puros-sangues capazes de controlar a magia Lycan em Burburel, oito membros da família Mebora, incluindo Leroy Mebora e eu.
Voltando… eu mal consegui me manter em pé por causa do tombo. Meu ombro latejava e minha respiração ardia, eu decidi me manter submissa, de cabeça baixa perante Leroy e seu capataz e alguns de seus soldados. Leroy me cercou, ficou me rodeando tentando captar algum resquício de meu cheiro. Ele estava transformado, e sua forma Lycan era e é simplesmente linda, um imenso lobo negro com olhos dourados. Quando ele mexeu nos trapos que chamo de roupas, eu me encolhi tentando esconder meus seios, e agradeci a tudo o que é mais sagrado à Deusa Luna pelo fato de eu ainda não ter me transformado e não ter o odor caraterístico do cio.
- Então, você vai me dizer quem é você?
A voz de Leroy ressoou diretamente em minha mente.
- Eu sou Lir… Eu sou Li… Isso, eu sou Li e trabalho aqui na olaria, não tenho casa e nem família.
- Li… Ok!! Me responda a razão das minhas bestas-feras não terem te devorado?
- Eu não sei senhor. Talvez eu não tenha carne o suficiente. Mas, eu não sei senhor.
É claro que eu sabia, sou a princesa Lirah, todo e qualquer Lycan, puro-sangue ou não, sente minha dominação, mesmo que minha loba ainda esteja adormecida. Foi que fiz, de forma inconsciente, com a bestas-feras quando elas pararam na minha frente.
- Me dê apenas um motivo para eu te manter vivo.
- Não tenho esse motivo senhor.
- Estou perdendo a paciência contigo, seu insolente. Me diz logo quem é você e a razão para eu te manter vivo.
- Eu sou Li, não tenho família. Minha mãe me abandonou em uma lixeira quando eu nasci. Me criei nas ruas comendo os restos juntos aos porcos e as raposas. Não tenho lar. Não tenho ninguém. Não sei o que te responder senhor.
Leroy se transformou em sua forma humana. Que homem lindo, alto e com os cabelos castanhos e cacheados, o dourado de seus olhos reluziam. Um homem lindo e mortal. Ele se manteve nu parado na minha frente, era visível que ele ainda me analisava. De forma suave e forte ao mesmo tempo, Leroy segurou meu queixo e me olhou diretamente em meus olhos, da mesma forma que seu lobo havia feito alguns minutos antes.
- Li, você agora trabalha para mim. Você vai cuidar das bestas-feras. Vai mantê-los nutridos, limpos e calmos. E isso não é um pedido, é uma ordem.
Acatei as ordens de Leroy da mesma forma que qualquer humano comum acataria. A caminho do canil, eu descobri que a fuga do dia anterior, ocorreu por causa de uma distração do antigo humano cuidador. O canil parecia um local de arruaça quando chegamos lá, e foi por esse motivo que Leroy ordenou que somente nós dois adentrássemos ao recinto. Meu estômago se embrulhou com o cheiro ferroso de sangue, no entanto, quando Leroy abriu os pesados portões de aço e começamos a caminhar, as bestas-feras foram silenciando seus uivos. Bestas-feras eram humanos que foram transformados na Lua Minguante para serem máquinas de guerra, por isso, eles nunca mais voltariam a forma humana, essas almas serão lycanos até o dia de sua morte. Com o tempo, sua mente humana enlouquece e sua fera lycana assume sua psique.
Quando Leroy e eu paramos na pequena sala administrativa, todo o canil estava em silêncio, nem parecia que segundos antes a algazarra imperava naqueles lugar. Leroy me olhou por inteira tentando entender o que estava acontecendo, cerrou seu cenho e quase que seus pensamentos se tornaram visíveis, de tanto que ele me analisava. Ele pegou um balde e uma vassoura e os jogou em meus pés com muita brusquidão. Aquilo doeu e me machucou, mas permaneci quietinha… bem quietinha…
- Você começa a trabalhar agora. E vai começar limpando todo o canil e depois vai dar banho em todas as bestas-feras. Você tem três dias para terminar o trabalho. Te aviso que se não terminar, vou alimenta-los com seus ossos. Leroy falou muito, mas muito secamente, nem preciso dizer que as análises de seus dourados olhos em mim continuaram enquanto ele falava.
Três dias depois, eu estava faminta, mais imunda ainda [com relação a isso eu não me importava], mas o chão e as paredes do canil estavam limpos, lavei as vasilhas onde serviam os alimentos, o bebedouro e organizei todas as ferramentas em um armário velho. Dei banho nas bestas-feras e sequei seus pelos, aparei suas unhas, cuidei das feridas e administrei as medicinas. E como um toque a mais, comecei a pregar plaquinhas de identificação com os nomes que elas me disseram por telepatia. Quando Leroy chegou, eu me encontrava dormindo recostada na pequena mesa central. A pancada que ele deu na madeira para me acordar, retumbou na minha cabeça e me deixou tonta, fazendo com que as bestas-feras começassem a rosnar, quando dei por mim, estava em pé pedindo para elas se acalmarem, não podia deixar que elas me denunciasse para ele. Lembrei de combinar com elas para não me denunciar nem a Leroy nem a ninguém.
- Gostei do trabalho que você fez. Agora está oficializado, você é o novo cuidador do meu peculiar exército. E cuide bem dele, o último cuidador virou sobremesa.
E da mesma forma que Leroy chegou, ele se foi.
Os anos seguintes foram tranquilos comigo vivendo, e fazendo questão de continuar a viver, nas sombras. Passei a dormir no quartinho atrás da sala administrativa, mantendo o canil limpo e as bestas-feras sempre prontas para Leroy. Uma sólida amizade surgiu entre nós, tanto entre as bestas-feras quanto com Leroy, que por sua vez, passou a frequentar o canil para me ajudar na lida com seu exército mortal. Diversas vezes, ele me perguntou como eu conseguia manter o domínio na mente deles, algumas outras vezes ele me levava alimento, e em outras vezes ainda, me chamava para sair para algum bar ou prostíbulo. É óbvio que eu neguei todas as vezes, e sempre o chamava de senhor. Leroy passou a confidenciar sua intimidade comigo, dizendo que não aguentava mais a fêmeas interesseiras de Burburel, que não queria ir em alguma negociação junto ao conselho, relatava seus sentimentos, desabafava sobre as discussões com seu pai. Eu sempre mantive minha postura submissa, mas não vou negar, que a presença dele me abalava, que eu chegava a sonhar com seu cheiro terroso e a sentir ciúmes de suas noitadas. Algumas vezes, eu precisei disfarçar o sorriso de meus lábios e me enfiar no meio das bestas-feras para esconder meu cheiro. Leroy passou a permear meus pensamentos e sentimentos, mas eu precisava continuar com meu plano, e agora, faltava pouco para o encontro planetário acontecer e a profecia da Deusa Luna se realizar: “Quando a Espada brilhar e fecundar o ventre do Cálice, uma nova Era de prosperidade irá surgir, essa Era ficará conhecida como A Era da Loba”.
Tudo mudou [de novo] no dia que fui surpreendida por Leroy.
Mathias, alguns de seus conselheiros, um pequeno exército, Leroy e algumas bestas-feras, tiveram que ir para as praias do Leste, no Mar de Sargaço, negociar uma rota comercial pelo interior das Terras Áridas. Com a partida da comitiva, eu me senti um pouco mais segura para me lavar, já fazia algumas fases lunares desde meu último banho, o próprio Leroy vivia reclamando do meu cheiro. Esperei passar quinze dias solares, é normal que nesse intervalo de tempo ocorra algum imprevisto com as bestas-feras, e eu precise arrumar algum outro espécimen ou organizar algum material extra, como nada aconteceu, deduzi que estaria segura para me banhar e retirar a crosta de sujeira do meu corpo. Tranquei o canil e soltei as bestas-feras, pedindo a elas para tomarem conta do recinto e não deixar ninguém entrar, já que somente duas pessoas entravam sem o alarde de seus rosnados e uivos, Leroy e eu. Preparei uma banheira bem generosa, coloquei flores e óleos essenciais, tudo bem que no dia seguinte eu iria passar uma mistura de carvão e fezes de pardal por todo o meu corpo, mas naquela noite, eu me permiti sentir a feminilidade de meu ser, de minha alma e de minhas ancestrais. Em nenhum momento eu percebi a presença de Leroy, mas ele estava lá me observando desde que comecei o ritual de limpeza do meu corpo. Eu estava deitada e totalmente imersa nas águas calientes, sorvendo sua energia reparadora e purificadora quando ouvi a voz de Leroy.
O medo e a insegurança se fizeram presentes.
- Uma vez eu perguntei quem era você e a razão de minhas bestas-feras não te devorarem? Outra vez, te perguntei o porque delas se sentirem confortáveis contigo? Inclusive elas te protegem. Ah! Teve uma vez também, em que te perguntei como você dominava meu pequeno exército com tanta destreza? Em todas às vezes você me respondeu que não sabia, que simplesmente fazia. Isso sem contar que todas as bestas-feras insistem em te chamar de ‘ela’.
Eu não sabia o que fazer, não sabia o que falar, então continuei muda em minha voz, mas não consegui conter minhas lágrimas. Já me imaginava retornando para a minha matilha, a Alcatéia Real de Mactíre, como a prisioneira que meu tio buscava a dez grande ciclos lunares.
- Então, agora eu quero a verdade. E, eu quero agora. E, acho bom você começar a falar.
A voz de Leroy estava mais grave do que de costume e mais séria do que quando ele aplicava uma sentença a algum infrator.
- Eu posso explicar.
Nem preciso dizer que as bestas-feras começaram a uivar ensandecidamente e que minha voz quase não saiu da minha boca e o sangue do meu corpo pareceu se esvair pelos poros. Leroy contornou a banheira e se posicionou em pé bem na minha frente. Eu suspirei, abaixei a cabeça, me acomodei no interior da banheira e comecei a contar toda a verdade
- Leroy, eu sou a princesa Lirah Gealach. Fugi dos domínios do meu tio, o rei tirano Melovh. Desde então vivo escondida aqui em Burburel, um dos poucos lugares do continente onde ele não tem poder, afinal de contas, ele não é puro-sangue. Além disso, a magia existente aqui não permite que minha verdadeira identidade seja revelada. Eu posso provar que estou falando a verdade.
Leroy continuava mudo e sem expressão facial. Eu não conseguia decifrar seu pensamento.
- Me diz, qual é a única Lycan que possuí a marca da Deusa Luna?
Leroy respirou com força e o som de sua respiração vibrou no ar. E, então respondeu:
- A verdadeira princesa lycana possui uma Lua Crescente em seu ventre.
Foi quando eu me levantei das águas e permiti que Leroy me visse nua, visse a mulher que eu sou, mas também visse a marca da Deusa Luna.
- Caralho!!!!
Foi a única palavra que Leroy falou, seus olhos brilharam de uma maneira diferente enquanto ele chacoalhava a cabeça em sinal de consternação.
Os segundos que vieram a seguir pareceram uma eternidade, até eu ouvir a voz de Leroy.
- Você tem noção de quantas vezes eu vim até aqui te observar na penumbra da noite e te ver brilhar como prata? Ou quantas vezes eu pensei que sentia atração por um determinando macho humano? Ou ainda, quantas vezes eu neguei o sentimento que bate em meu peito [Leroy deu batidas com o punho fechado seu peito]? Eu precisava de você, precisava ficar ao seu lado, ouvir sua voz, sentir seu cheiro fedorento. E fui capaz de inventar um bilhete, para meu pai, dizendo que mercenários Terpeses haviam sido vistos nas redondezas. Claro que ele autorizou meu retorno. A questão é que eu retornei por não aguentar ficar longe de você, Li. Quer dizer Vossa Alteza Lirah. Por que você nunca me contou quem era? Como pode fazer isso comigo?
- Eu não podia. Meu tio oferece um barril de ouro como recompensa a quem me capturar. Não sabia se podia confiar em você ou no seu pai ou em qualquer um. Estou por conta própria atrás do Cálice, somente ele poderá acordar a minha loba, e assim, eu poderei lutar com meu tio e retomar o que é meu. O Cálice está aqui, eu procuro por ele desde que cheguei. Eu sinto que ele está aqui.
Lágrimas continuaram a banhar minha face. Foi a primeira vez que chorei desde a primeira noite que passei escondida em Burburel. Quando eu percebi, Leroy estava do meu lado, eram os olhos do seu lobo que me olhavam, eu vi desejo, eu vi luxúria, mas acima de tudo, eu vi amor. Leroy me tirou da banheira e me enrolou em uma toalha. Passou suas calejadas mãos pela minha face e pelos meus lábios. Eu senti que ele e seu lobo queriam a mesma coisa, ambos queriam a mim, queriam meu eu por completo. Conforme Leroy se aproximava, o calor que emanava de seu corpo aumentava, ao mesmo tempo, em que algo dentro mim despertava e começava a ronronar: minha loba.
Os momentos seguintes foram insanos, Leroy e eu começamos a nos beijar com uma intensidade que eu não sabia que tinha. Eu nunca havia beijado antes, nem sei dizer se estava fazendo certo, só sei que queria fazer. Suas mãos percorreram meu corpo, com meu instinto subi em seu colo e o abracei com minhas pernas. O que veio a seguir ainda continua inexplicável, partículas luminosas começaram a nos rodear, nos envolvendo em um casulo quente de energia. Eu sentia a excitação de Leroy e sentia a minha também. Era gostoso, era divino, era vontade, era desejo. E, mesmo no calor do momento, eu precisava dizer a ele que nunca tinha estado com um macho, no entanto, antes mesmo de meus pensamentos voltarem a sua ordem, minha loba despertou e uivou. Uivou o uivo de seu companheiro, de seu macho. Leroy e eu éramos companheiros. E, na loucura do momento e da descoberta, nós acasalamos tanto na forma humana quanto na forma lycana, foi intenso, foi etéreo. Ele me marcou e eu o marquei também.
Acordar protegida pelos braços de Leroy foi sublime, a partir daquele momento eu sabia que queria acordar assim todas as manhãs. Durante nosso acasalamento, tive a minha primeira transformação, minha loba é branca e seus olhos são cinzas, quando ela se despertou, nem mesmo Leroy conseguiu manter seu domínio, ele se curvou junto com as bestas-feras. E, também, tivemos outra revelação quando mostrei a espada Kyrliam para Leroy e ele a segurou, o grande cristal de turmalina azul brilhou, liberando uma magia que eu não sabia que existia, uma empunhadura se moldou em sua mão.
O momento seguinte ainda é difícil de se compreender, mas na aurora da manhã e sob a luz da Estrela da Manhã, que eu não sei como iluminava o meu quartinho, Leroy fecundou meu ventre. Enquanto Mathias não retornasse, resolvemos continuar mantendo segredo da minha verdadeira identidade. Quando minha barriga começou a crescer, Leroy me escondeu entre as concubinas de seu pai. Nove luas depois, eu dei a luz a uma linda puro-sangue, uma menininha saudável, com cabelos brancos e negros e um olho dourado e outro cinza. Leroy era pura emoção, e mais uma vez, para que ninguém desconfiasse, ele mentiu dizendo que eu era sua concubina exclusiva e que se alguém contasse sobre sua filha, a punição viria através das bestas-feras. Eu saia poucas vezes do harém, os meus momentos favoritos eram quando eu levava Luna para brincar com as bestas-feras. Era incrível vê-la correndo por entre monstros, se enrolando em seus pêlos e sendo lambida por eles. Leroy sempre era a face do orgulho nesses poucos momentos, sua filhinha era a Lycan mais dominante de todo o continente, mais dominante que eu, a sua própria mãe. Luna era a reencarnação da própria Deusa, a detentora da prosperidade, ela era A Loba da profecia.
Quando Mathias retornou, Luna já tinha a idade de um pequeno ciclo lunar, meus cabelos já estavam longos e o elo entre Leroy e eu estava cada vez mais forte. A cena foi surreal, sim surreal. Imagina a cena: Leroy e eu contando para Mathias tudo o que havia acontecido e lhe apresentando sua neta… Viu, surreal. Nosso medo era de que ele surtasse e ameaçasse em me devolver para meu tio, mas o que vimos foi totalmente diferente. Vimos um Lycan grande, forte e carrancudo chorar como um filhote perdido na mata, se abraçar em sua neta da forma mais serena possível. Mathias, de uma forma ou de outra, sentiu a esperança do retorno de sua matilha, a Alcatéia Mebora.
Passado o momento de revelação e esperança, era chegada a hora de reunir tudo e todos que lutariam contra meu tio. E foi assim que, Mathias, Leroy e eu, elaboramos um plano para eu retomar o meu reino, não seria fácil mas estávamos determinados.
Mais um grande ciclo lunar se passou, quando começamos a receber o retorno de nossos aliados. A Nação Humana foi a primeira a se apresentar. O Rei Regente Melovh os caçava e os escravizava, por isso, eles começaram a viver nas Montanhas de Lava, um local de difícil acesso que os protegia das incursões mercenárias. Recebemos o retorno de várias pequenas nações lycanas de desgarrados e renegados. Essas nações eram subjugadas por Melovh, que lhe cobrava impostos altíssimos e não lhes permitiam sair dos domínios das Planícies Alagadas que margeava o norte da Floresta Dourada. Mas, o dia que mais me emocionei, foi quando minha tia Chrystal veio pessoalmente conferir a veracidade dessa aliança, ou seja, veio ver se realmente era eu quem estava ali. Nosso reencontro foi banhado por nossas lágrimas e por seu amor maternal. Minha tia chegou para melhorar nosso plano de retomada, ajudou a elaborar a estratégia disponibilizando uma parte de seu exército, além disso, ela levou Luna para seus domínios, pois lá ela estaria protegida por sua magia, lycanos e dragões. Sim, as Montanhas Geladas eram a morada das Dragonesas de Prata.
E foi assim que elaboramos um plano mortal para destituir aquele famigerado e invejoso do trono que pertencia a meu pai, mas que agora me pertence. Eu tento manter a harmonia em minhas emoções e não trazer as energias da vingança para meu peito, mas é difícil, é uma batalha interna diária. Eu não vi os restos mortais de minha mãe, mas estava presente quando meu pai se atirou da muralha para o Vales das Sombras, e aquela imagem sempre acompanha meus pensamentos. É ela que me ajuda a manter minha determinação.
Agora estou aqui diante da Floresta Dourada e falta apenas uma semana para o alinhamento planetário da profecia. Meu tio e seu exército de mercenários estão cercados, e da mesma maneira que não criei expectativas quando fugi da Alcatéia Mactíre, também não estou criando agora. Tenho a determinação correndo em minhas veias e o fogo da justiça alimentando minha alma.
Eu sou o Cálice, Leroy é a Espada, e a nossa filha Luna é A Loba, nada e nem ninguém irá nos impedir de acabar com essa era de terror que vivemos no último milênio.
Meu foco está na vitória.
A Loba [minha filha] está comigo.
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