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Duas Mães (Crônica)

Com o terço na mão, ela sentava no sofá bege da sala, vestindo saia longa e de unhas bem feitas, para rezar mais uma vez. Havia mais fé nela do que jamais haveria em mim, então que ela rezasse por duas.


A minha avó, Maria, era vaidosa, dizia que os cabelos eram a “moldura do rosto” e reclamava do meu jeito desleixado.


“Ninguém gosta de gente mal arrumada”, ela dizia-me.


Cresci agarrada à barra de sua saia. Gostava de ser “a menina de seus olhos” - palavras que usou -, mas suspeito que ela poderia dizer isso aos outros netos também.


A língua era afiada como navalha, os pensamentos rápidos e as contas feitas sem calculadora, não importava quais fossem.


“Sou professora aposentada”, ela dizia-me.


Jô Soares, Jornal Nacional, vez ou outra alguma novela, enquanto eu queria desenho animado e jogos de tabuleiro.


Na rua, quando saíamos juntas, queria segurar a minha mão - e ai de mim se não obedecesse.


“Não vem mais! Onde já se viu? Vem um carro, uma pessoa mal intencionada… Vai dar a mão, sim!”


Lembro dos dias de escola, quando acordava tarde, cheia de preguiça, e ela ia até a minha cama para me fazer despertar. Ajudava-me com os sapatos, fazia meu café da manhã, deixava-me sentir cada nuance do amor que eu não sabia nomear.


“Eu sou sua segunda mãe!” E ela era mesmo. Não tive pai presente, mas tive duas boas mães.


Um dia o IBGE bateu à nossa porta; a conversa foi breve, enquanto a moça anotava cada resposta dada por minha avó.


“Eu sou comerciante.” Essa era nova. Que comércio que eu não tinha visto nenhum?


Minha mãe era a filha mais velha e, por mais que houvesse outras pessoas em nossa família, durante muitos anos eu senti que éramos apenas eu, minha mãe e minha avó, depois nasceu meu irmão. Éramos felizes e eu não sabia.


Entrei na adolescência e, assim como tantos outros jovens insuportáveis, por vezes estava azeda como um limão. Minha avó, sempre preocupada, perguntava:


“Alguém lhe disse alguma coisa?”


“Que coisa, minha avó?”


“Qualquer coisa que possa ter lhe magoado. Pode ser algo falando de mim, de nossa família.”


Minha resposta era sempre “não”, pois realmente nunca me disseram nada. Porém, os olhos apertados de minha avó pareciam aflitos, e ela não era uma mulher de aflições.


Em suas caixas de fotografia, vi fotos de peruca, piteiras douradas, roupas alinhadas e maquiagens diferentes, usadas nas décadas de cinquenta e sessenta. Era bonito de ver e ela parecia divertir-se assistindo-me olhar.


Eu e meu irmão, dez anos mais jovem, fizemos a primeira comunhão. Minha família era católica, mas também messiânica e espírita. Não recusava um banho de sal grosso ou de pipoca.


Nasci em Salvador, minha avó e minha mãe eram de Campina Grande, na Paraíba. Eu nunca perguntei por qual motivo haviam ido embora, nem pensava nisso.


“Não fale essas coisas.”


Palavrões não eram bem-vindos, mas o riso era frouxo. Minha mãe era bem humorada, não se casou, embora eu soubesse que ela gostaria que tivesse acontecido. Era bonita, inteligente, se fez doutora, advogada, e cansava de pegar causa de graça, especialmente se aparecesse uma mãe com uma criança que o pai não queria reconhecer.


Comigo foi assim; meu pai também não quis, mas eu dei sorte, porque tive duas mães e uma delas era advogada. A outra, por sinal, às vezes era professora, outras, comerciante, e também já se apresentou como “do lar”. Eu achava engraçado, mas não me importava. Ela podia dar qualquer resposta, que eu estaria satisfeita, pois, talvez, ela fosse mesmo tudo aquilo. Parecia ser.


No prédio, na rua, em outros lugares, Dona Maria apresentava-se assim, contudo esse também não era seu nome. Estava tudo bem, já que era um nome incomum e muita gente errava a pronúncia. Talvez ela só não tivesse paciência. Eu não ligava; minha avó podia ter o nome que quisesse.


Lembro de um dia no qual estávamos em um elevador do nosso prédio. Um vizinho entrou, mais ou menos da idade dela, e disse:


-- Eu conheço a senhora.


-- Não conhece não, meu rosto é comum.


Ficou um silencio ensurdecedor. Eu notei, ele se calou, minha avó também. Ela podia responder o que quisesse. Eu era jovem e não tinha traquejo para entender essas coisas.


Em 2001 minha mãe morreu. Toda nossa família estava presente no hospital e eu não lembrava da metade deles. Minha avó estava despedaçada, frágil como eu jamais vi. Nosso grande amor estava em coma e já sabíamos que “só um milagre”, como uma de minhas tias disse. Minha avó tinha toda a fé do mundo, mas eu, não.


Diante do luto, na espera perversa pelo momento final, enquanto enchemo-nos de esperanças vazias e irracionais, minha tia, que era a caçula da minha avó, chamou-me de canto para situar-me da história de nossa família.


“Sabe quem é sua avó?”


Eu sabia: minha segunda mãe.


“China.”


As explicações vieram. Falou-se da Ladeira da Montanha, do famoso 63 - conhecido como o maior bordel da Bahia -, da infância pobre, das experiências tristes, de minha bisa lavadeira e de meu bisavô, que morreu tão cedo que nem conseguiu criar minha avó e seus quatro irmãos. Foi aí que soube que ela foi embora de casa para garantir o sustento da família.


A professora não estudou além da quarta série, mas lia muito bem e calculava muito bem. Ela era afinada, cantava louvor, samba e MPB. Gostava muito de Roberto Carlos e Nelson Gonçalves, além de falar alguns idiomas. As filhas formadas, a família estruturada. Ela garantiu tudo e eu tive tudo, especialmente amor.


Tempos depois veio a doença de minha avó. Tivemos poucas oportunidades para nos conhecermos melhor, mais honestamente. Eu nunca precisei entender ou aceitar nada sobre seu passado. Ela, por outro lado, entendeu e aceitou que eu não lhe apresentaria um marido. Meu caminho não seria aquele tão sonhado por elas, minhas passadas já seguiam em outra direção.


A família voltou a circular ao redor dela após a perda de minha mãe. Eu fiquei só, ela lamentou.


Não é verdade quando dizem que, com o passar do tempo, tudo fica mais fácil. Não fica. Ainda sinto cada nuance das lágrimas que desenharam meu rosto. Mas também não é mentira que aprendemos a conviver com a dor, como qualquer um que ainda se agarra à vida, mesmo quando ela cobra um alto preço por cada respiração.


Ainda lembro de minha avó com o terço na mão, sentada no sofá bege da sala, vestindo sua saia longa, com unhas bem feitas e rezando mais uma vez. Sempre haverá mais fé nela do que em mim. Hoje penso em suas passadas ainda firmes, antes das dores que nos separaram, e imagino ela imperatriz, dona da Ladeira da Montanha, dona de muitas das minhas melhores memórias, e da metade do meu amor, pois eu tive duas mães.


ree


2 comentários


Juliete Osório
Juliete Osório
30 de jan.

Emocionante!

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Ingrid Gomm
Ingrid Gomm
30 de jan.
Respondendo a

Obrigada!


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